A morte de João Batista


A morte de João Batista, durante uma trágica festa de aniversário, é uma das mais conhecidas da história. Mas, o relato feito pelos Evangelhos, será histórico? Podemos aceitá-lo, com todos os pormenores?

As duas versões do fato

Só os evangelhos de Mateus e Marcos a narram. Lucas e João omitem-na. Por sua vez, dos dois evangelhos que a contam, MARCOS traz o relato mais completo e original, pois MATEUS apresenta apenas uma versão abreviada, tomada de Marcos.

Portanto, dos livros bíblicos, Marcos é quem proporciona a informação melhor e mais pormenorizada sobre esse fato.

O problema coloca-se porque existe uma versão diferente, contada por um historiador judeu chamado FLÁVIO JOSEFO, do séc. I. Este escritor compôs, por volta do ano 93 d.C, uma obra intitulada “Antiguidades Judaicas”, na qual apresenta este episódio de um modo diferente.

O juramento imprudente

Vejamos primeiramente, o relato de MARCOS, que diz assim:

«6,16 Herodes, ouvindo isto, dizia: “É João, a quem eu degolei, que ressuscitou.” 17 Na verdade, tinha sido Herodes quem mandara prender João e pô-lo a ferros na prisão, por causa de Herodíade, mulher de Filipe, seu irmão, que ele desposara. 18 Porque João dizia a Herodes: “Não te é lícito ter contigo a mulher do teu irmão.” 19 Herodíade tinha-lhe rancor e queria dar-lhe a morte, mas não podia, 20 porque Herodes temia João e, sabendo que era homem justo e santo, protegia-o;
quando o ouvia, ficava muito perplexo, mas escutava-o com agrado.
21Mas chegou o dia oportuno, quando Herodes, pelo seu aniversário, ofereceu um banquete aos grandes da corte, aos oficiais e aos principais da Galileia. 22 Tendo entrado e dançado, a filha de Herodíade agradou a Herodes e aos convidados.
O rei disse à jovem: “Pede-me o que quiseres e eu to darei.” 23 E acrescentou, jurando: «Dar-te-ei tudo o que me pedires, nem que seja metade do meu reino.”
24 Ela saiu e perguntou à mãe: “Que hei-de pedir?” A mãe respondeu: “A cabeça de João Batista.” 25 Voltando a entrar apressadamente, fez o seu pedido ao rei, dizendo: “Quero que me dês i-mediatamente, num prato, a cabeça de João
Baptista.” 26 O rei ficou desolado; mas, por causa do juramento e dos convidados, não quis recusar.
27 Sem demora, mandou um guarda com a ordem de trazer a cabeça de João.
O guarda foi e decapitou-o na prisão; 28 depois, trouxe a cabeça num prato e entregou-a à jovem, que a deu à mãe.
29 Tendo conhecimento disto, os discípulos de João foram buscar o seu corpo e depositaram-no num sepulcro» (Mc 6,16-29).

Uma família complicada

Logo no início do relato, encontramos um erro. MARCOS afirma que Herodíade, a esposa de Herodes, tinha estado casada antes com um irmão deste, chamado «Filipe» (6,17). É certo que Herodíade tinha estado casada antes com um meio-irmão do seu marido, mas chamava-se Herodes, como o seu atual marido, e não Filipe.

Pode parecer estranho que dois meios-irmãos tenham o mesmo nome. Mas sabemos que a família de Herodes era sumamente complicada. O rei Herodes (seu tronco central) esteve casado com dez esposas, algumas com o mesmo nome; e delas teve numerosos filhos, vários dos quais se chamaram Herodes (daí os historiadores lhe acrescentarem um sobrenome, para os distinguir). Por isso não é estranho que Marcos, que não era um minucioso historiador, se tenha confundido e dito que o primeiro marido de Herodíade se chamava Filipe, quando Filipe era outro irmão de seu marido.

Alguns comentadores da Bíblia, para salvar o erro de Marcos, dizem que o primeiro marido de Herodíade se teria chamado Herodes Filipe (unindo os dois nomes: o correto, Herodes, e o errôneo Filipe dado por Marcos). Mas, nunca existiu um personagem com o nome de “Herodes Filipe”, a não ser na mente desses comentadores.

Os dois Herodes

Um segundo deslize cometido por Marcos, é chamar a Herodes «rei» (6,14). De facto, houve dois Herodes na vida histórica de Jesus. O primeiro é o famoso “rei Herodes”, que governava o país quando Jesus nasceu. É o cruel monarca que, segundo Mateus, após receber em Jerusalém os Magos vindos do Oriente, mandou matar todos os meninos de Belém e seus arredores, procurando eliminar o Menino Deus.

Mas, durante a vida adulta de Jesus, quem governava o país era um filho desse rei Herodes, também chamado Herodes, e com o sobrenome de Antipas. O qual não era “rei”, mas apenas “tetrarca” (um título inferior ao de rei, derivado de tetras = quatro e arca = governante; isto é, “o que governa a quarta parte de um território”). Foi este “tetrarca Herodes” que mandou matar João Batista, e que mais tarde também participou no julgamento de Jesus (Lc 23,8-12).

Mateus e Lucas, a este segundo Herodes chamam corretamente «tetrarca» (Mt 14,1; Lc 3,1). Como vimos, Marcos chama-lhe erradamente «rei», confundindo muitos leitores, que pensavam ser este Herodes da vida adulta de Jesus o mesmo “rei Herodes” da sua infância.

Pela mulher de seu irmão

Um terceiro elemento duvidoso do relato de Marcos é o motivo da prisão de João. Segundo o evangelista, Herodes Antipas prendeu-o porque o Batista o tinha criticado pelo seu casamento irregular com Herodíade (6,17).

De fato, numa viagem que fez a Roma por volta do ano 27 d.C, Herodes Antipas hospedou-se em casa de seu meio-irmão Herodes, que levava uma vida privada tranquila na capital do Império, como cidadão comum. Estava casado com Herodíade, mulher ambiciosa e de carácter, que não se resignava àquela obscura existência.

Quando Herodíade e o poderoso Antipas se conheceram, ateou-se a vaidade dela e a paixão dele; e ambos concordaram em ela abandonar o seu marido em Roma e partir com o seu cunhado; e que este, mal chegasse à Galileia, despediria a sua mulher.

Este segundo casamento do tetrarca deve ter produzido grande escândalo e indignação na Galileia, por violar abertamente a Lei de Moisés (de Lv 20,21) que proibia o casamento com dois irmãos. Segundo Marcos, João Batista atreveu-se a denunciar publicamente semelhante imoralidade, e por isso foi parar com os ossos à cadeia.

Por motivos políticos

Mas, para FLÁVIO JOSEFO, o motivo daquela prisão foi outro. O historiador judeu escreve: «Grandes multidões acorriam para ouvir João (o Batista), devido à enorme força de atração que as suas palavras exerciam. Então, Herodes teve medo de que João aproveitasse esta extraordinária influência para incitar os seus seguidores a uma rebelião, pois parecia que toda a gente fazia caso das suas palavras. E entendeu que era melhor eliminá-lo a tempo, antes de ter que lamentar mais tarde as revoltas que este homem perigoso pudesse ocasionar. E desse modo João, por causa desta suspeita, foi preso e conduzido para a fortaleza de Maqueronte, onde foi executado» (in Antiguidades Judaicas, 18,5).

Assim, segundo MARCOS, o motivo da prisão do Batista foram as suas críticas ao segundo casamento do governante; segundo FLÁVIO JOSEFO, foi o receio de Antipas de que houvesse uma rebelião.

A versão de JOSEFO parece mais palpável. Porque, embora João pudesse ter criticado Herodes pela sua situação matrimonial ilícita, como afirma Marcos, o tetrarca deve ter tido motivos muito mais graves para mandar prender alguém tão popular e estimado pelo povo, dado o risco implicado nesse ato. Além disso, o próprio Marcos diz que Herodes visitava o prisioneiro para o ouvir, e que o escutava com agrado (Mc 6,20). Como podia Herodes escutar com agrado, alguém que o tratava por imoral e perverso? E como condescendia João em falar afavelmente com ele?

Dupla personalidade?

Um quarto elemento duvidoso do relato evangélico é o estranho procedimento de Herodes. De fato, no v.17 lemos que o tetrarca mandou prender o Batista sem qualquer consideração; e que não só o encarcerou, como também o tinha posto «a ferros na prisão».

Mas, a partir do v.19, o quadro muda. Agora diz que era Herodíade quem perseguia João e o queria matar, ao passo que Herodes o “admirava”, o considerava “justo e santo”, o “respeitava”, e até o “protegia” e defendia dos ataques da sua mulher (o verbo synetêrei significa, literalmente, “defender alguém de ofensas e morte”). O próprio encarceramento, no relato de Marcos, parece mais uma custódia protetora para João do que um suplício.










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